Revista Abaquar Cult | Santos Dumont
Alessandra Batista entrevista Néle Azevedo
Publicada na Revista Abaquar Número 2, 2016
https://www.neleazevedo.com.br/publicacoes-revista-abaquar-cult
São Paulo, 13.06.2015
Eu gostaria que começasse me contando do início, da sua infância, lembranças, algum fato inusitado, e sua adolescência. Onde morou em Santos Dumont, do que se lembra de onde viveu, até quando viveu aqui e quando e como descobriu sua vocação para a arte.
Sou a filha mais velha de quatro irmãos. Nasci no Córrego do Ouro em uma casa branca rodeada por um quintal com cercas de bambu, onde havia flores de algodão e bicho da seda pendurados nos galhos sob o céu muito azul - vem desse quintal minha primeira experiência com a beleza.
Dona Elza passava o dia na janela da casa em frente e Vicente Celestino cantava na rádio transmitida pelo auto falante na rua. O mundo trágico me foi apresentado pelas canções de Vicente Celestino: o Ébrio, Sangue e areia, Coração Materno, (eu tinha quase certeza que o coração da mãe do Campônio seria encontrado a qualquer momento no portão de minha casa). A vida era assim trágica e bela no olhar
Mudamos para o centro, uma casa na Rua Fagundes. No pequeno quintal havia sempre formigas e galinhas; lembro-me do horror quando as matavam - tanto as galinhas quanto as formigas...
Insisti pra ir à escola. Aos cinco anos queria ler e escrever, como não havia pré, nem maternal o Colégio São José me recebeu como ouvinte na classe do primeiro ano.
Ler as histórias escritas, compreender operações simples de matemática era um deleite. Como se eu alcançasse um universo inteiro aberto. A escola era um mundo novo, mas um mundo como extensão do meu interior, um mundo protegido.
A percepção da cidade e do meu corpo muda com a morte de meu pai aos 29 anos – eu tinha 8 anos . Foi no trajeto a pé, em procissão, acompanhando o enterro, que tive pela primeira vez a dimensão coletiva da cidade - as ruas adquiriram outra dimensão – pela primeira vez era um lugar exterior, o lugar do rito, o lugar do outro, o lugar da história, o lugar público onde vida e morte acontecem. Não era mais uma extensão de um mundo interior – a cidade ganhou realidade e eu um corpo. Pés e pernas ganharam vida no trajeto, eu tinha o coração pulsante, não mais apenas olhos – até então todo o corpo era os olhos por onde entrava o mundo.
Mudamos para a Rua Capitão Fidelis, mais conhecida como Rua da Biquinha. A rua era o nosso espaço de troca, de atuação. Ali inventávamos as brincadeiras, construíamos nossos brinquedos junto com todos. Tudo era criado, inventado no dia a dia. Nada estava pronto. Criar era cotidianamente necessário. Adorávamos o circo e os comícios dos políticos em campanha vindos da capital, eram acontecimentos na cidade. Faziam ondas em seu mar de calma e isolamento.
O golpe de 64 fez um silencio visível na cidade. Eu tinha 13 anos. A escola mudou disciplinas, alterou o foco, não havia mais críticas. Não vi prisões nem torturas. Vivemos no isolamento da cidade, do colégio de freiras, na luta física pela sobrevivência material e levei muito tempo pra compreender este silêncio como uma forte imposição que causou muitas mortes reais e pequenas mortes por talentos silenciados.
Além da calada da ditadura a cidade me parecia cheia de muros invisíveis erguidos pelo preconceito e pela forte divisão de classe social: “Moça direita” não andava no passeio de cima, não entrava no clube Social, não saia sozinha. Levei muitos anos pra compreender o que não era dito, mas que se fazia mais presente que aquilo que é dito - (moça direita = moça branca classe média / clube Social = frequentado pelos negros).
Ajudei a organizar a primeira biblioteca da cidade – trazia livros pra casa. Lia-os durante a noite pra devolvê-los no dia seguinte. A literatura veio aumentar na minha vida cotidiana a possibilidade de ter mundos imaginados, ampliando a experiência do real.
Saí da cidade aos 18/19 anos. Fui trabalhar como escriturária do INPS em Aimorés, depois, escriturária no Banco do Brasil e auditora na Previdência Social. O concurso público foi para mim e ainda é para muitos, uma forma de acessão social.
Foi um longo caminho até a escolha pelas artes visuais. Mesmo atuando em outros setores da sociedade, como bancária e funcionária pública, eu vivia ligada à filosofia, à literatura, à poesia. Descobri a possibilidade do desenho em São Paulo, no curso do Silvio Dworecki, em seguida no curso do Dalton de Luca onde fiquei por três anos e de fato me fez escolher as artes plásticas como campo de atuação. Entrei na faculdade Santa Marcelina para cursar Artes Plásticas, aos 43 anos. Portanto, foi uma opção da maturidade. Por fim, encontrei nas artes plásticas a mesma necessidade de criar e inventar no dia a dia, de compreender o mundo e a vida através do trabalho.